Sunday, January 15, 2006

Soco no estômago!

Antes de copiar um baita texto, gostaria de fazer meu apelo aos céus: CHEGA DE VERÃO! Podemos voltar a ter agradáveis dias de 21°C?????
Obrigada!

O dramaturgo britânico Harold Pinter, 75 anos, recebeu o prêmio Nobel de Literatura 2005. Pinter mandou seu discurso em vídeo, que foi apresentado durante a cerimônia. Ele dizia:

“Em 1958 eu escrevi o seguinte:
Não há fortes distinções entre o que é real e o que é irreal, nem entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente verdadeira ou falsa; pode ser tanto verdadeira quanto falsa.” Eu acredito que essas afirmações ainda têm sentido e ainda podem se aplicar à exploração da verdade através da arte. Então, como escritor, eu me uso delas, mas como cidadão, eu não posso. Como cidadão, eu preciso perguntar: O que é verdadeiro? O que é falso? A verdade no drama é sempre imprecisa. Você nunca a descobre, mas a busca por ela é compulsiva. A busca é o que claramente motiva este empenho. A busca é sua tarefa. É mais fácil você não tropeçar na verdade, colidir com ela, ou simplesmente vislumbrar uma imagem ou forma que parecem corresponder à verdade do que perceber que você o fez. Mas a “verdade verdadeira” é que nunca há nada igual à verdade a ser encontrada na arte dramática. Há várias. Essas verdades desafiam-se, recuam uma da outra, refletem-se, ignoram-se, atormentam-se, são cegas. Às vezes, você sente que tem a verdade em suas mãos por um momento e no outro, ela escorre por entre seus dedos e desaparece. Por várias vezes me perguntaram como surgem minhas peças. Não sei dizer. Nem poderia nunca resumi-las, a não ser dizer que isso é o que aconteceu. Isso é o que eles disseram. Isso é o que eles fizeram. A maioria das peças é produzida a partir de uma linha, palavra ou imagem. A palavra dada é geralmente seguida por uma imagem. Darei dois exemplos de duas linhas que me vieram à cabeça, seguidas por uma imagem, seguidas por mim. As peças eram The Homecoming e Old Times. A primeira linha em The Homecoming é “O que você fez com a tesoura?” A primeira linha de Old Times é ‘Escuridão’. Nos dois casos, eu não tinha outras informações.
No primeiro caso, alguém estava obviamente olhando uma tesoura e estava se perguntando o porquê de alguém de quem ele suspeitava tê-la roubado. Mas de alguma maneira eu sabia que esta pessoa não estava nem aí pra tesoura ou pra seu interrogador. ‘Escuridão’ eu tive como a descrição do cabelo de alguém, o cabelo de uma mulher, e era a resposta a uma pergunta. Nos dois casos, eu me senti compelido a perseguir o problema. Isso aconteceu visualmente, um fade bem lento, das sombras à luz. Eu sempre inicio uma peça chamando os personagens de A, B e C.
Na peça que veio a ser The Homecoming, eu vi um homem entrar numa sala e perguntar algo a um homem mais jovem sentando num sofá feio lendo um jornal de corridas. De alguma forma eu suspeitei de que A era pai de B, mas não tinha provas. Isso foi entretanto confirmado um tempinho depois, quando B (que veio a ser LENNY) diz para A (que veio a ser MAX), ‘Pai, você se importa em mudar de assunto? Quero te perguntar uma coisa. A prato que comemos na janta agora, qual o nome? Como você chama? Por que você não compra um cachorro? Você é um cozinheiro de cachorros. Sinceramente. Você pensa que está cozinhando pra um monte de cachorros.’ Então, uma vez B chamando A de pai, me pareceu razoável assumi-los como pai e filho. A também era claramente um cozinheiro, e parecia não ser bom nisso. Isso significaria que não haveria mãe? Eu não sabia. Mas como eu me disse na hora, nossos inícios nunca sabem nossos fins. ‘Escuridão’. Uma grande janela. Anoitecer. Um homem, A (que veio a ser DEELEY), e uma mulher, B (que veio a ser KATE), sentados, bebendo. ‘Gordo ou magro?’ o homem pergunta. De quem eles estão falando? Então eu vejo, à janela, uma mulher, C (que veio a ser ANNA), em outra condição de luz, de costas para eles, de cabelos escuros. Esse é um momento estranho, o momento de criar personagens que até então não existiam. O que vem depois é intermitente, incerto, mesmo alucinatório, embora algumas vezes pode ser uma avalanche sem fim. A posição do autor é estranha. Em termos de ele não ser bem-vindo pelos personagens. Os personagens resistem ao autor, eles não são fáceis de conviver, eles são impossíveis de definir. Você certamente não pode lhes dar ordens. De certo modo, você joga com eles sem parar, gato e rato, cobra-cega, esconde-esconde. Mas finalmente você percebe que tem pessoas de carne e osso nas mãos, pessoas com vontade própria e uma percepção de si mesmas, feitas de partes que você não pode mudar, manipular ou distorcer. Portanto, linguagem em arte permanece uma transição muito ambígua, uma areia movediça, um trampolim, uma piscina congelada que vai se revelando para você, o autor, a qualquer momento. Mas, como eu disse, a busca pela verdade não pode parar nunca. Não pode ser adiada, nem transferida. Deve ser encarada agora, imediatamente.
O Teatro Político apresenta problemas completamente diferentes. Sermões devem ser evitados a todo custo. Objetividade é essencial. Os personagens devem poder respirar por si só. O autor não pode confiná-los e restringi-los a satisfazer seu gosto, ou disposição, ou preconceito. Ele deve estar preparado para deixá-los próximos de uma variedade de anjos, de uma despretensa perspectiva, pegá-los de surpresa, talvez, ocasionalmente, contudo dar-lhes a liberdade de ir aonde quiserem. Isso nem sempre funciona. E uma sátira política, claro, não segue nenhum desses preceitos, na verdade, faz exatamente o oposto, que é a sua função. Na minha peça The Birthday Party eu permito que um leque de opções ocorram numa densa floresta de possibilidades antes de finalmente focá-las num ato de dominação. Mountain Language não tem tamanho leque. Permanece brutal, curta e feia. Mas os soldados na peça se divertem com ela. De vez em quando, um se esquece de que algozes facilmente se entediam. Eles precisam de algumas gargalhadas para manterem seus espíritos alegres. Isso foi confirmado, claro, pelos eventos no Abu Ghraib, em Bagdá. Mountain Language dura apenas 20 minutos, mas poderia durar horas, o mesmo padrão repetindo-se, repetindo-se, repetindo-se. Ashes to Ashes, por outro lado, me dá a impressão de acontecer embaixo d´água. Uma mulher se afogando, sua mão procurando um apoio entre as ondas, afundando longe de vista, procurando alguém, mas sem achar ninguém lá, acima ou embaixo da água, encontrando somente sombras, reflexos, flutuando; a mulher, uma figura perdida numa paisagem naufragante, uma mulher incapaz de escapar da morte que parecia pertencer apenas aos outros. Mas como eles morreram, ela deve morrer também.
Linguagem política, da forma usada pelos políticos, não se arrisca em nenhuns destes territórios, desde que a maioria dos políticos, até onde nos é mostrado, não está interessada na verdade, mas no poder e na manutenção deste poder. Para isso, é essencial que as pessoas permaneçam na ignorância, que elas ignorem a verdade, mesmo a verdade sobre suas próprias vidas. O que nos ronda, portanto, é uma vasta variedade de mentiras, que nos alimenta. Como cada um de nós sabe, a justificativa dada para a invasão do Iraque foi que Saddam Hussein possuía um grande arsenal de perigosíssimas armas de destruição em massa, algumas das quais, poderiam ser disparadas em 45 minutos, causando terrível devastação. Nos garantiram que era verdade. Isso não era verdade. Nos disseram que o Iraque tinha relação com o Al Quaeda e dividia a autoria pela atrocidade em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001. Nos garantiram que era verdade. Isso não era verdade. Nos disseram que o Iraque ameaçava a segurança do mundo. Nos garantiram que era verdade. Isso não era verdade. A verdade é algo inteiramente diferente. A verdade tem a ver com como os Estados Unidos entendem seu papel no mundo e como escolhem incorporá-lo. Mas antes de voltar ao presente, eu gostaria de dar uma olhadinha no passado recente, ou seja, a política internacional americana desde o fim da 2ª Guerra. Eu acredito que seja nossa obrigação nos questionar sobre este período. Todos sabem o que aconteceu na União Soviética e na Europa Oriental durante o período pós-guerra: a brutalidade sistemática, as atrocidades generalizadas, a fria supressão do pensamento individual. Tudo isso está bem documentado e comprovado. Mas meu ponto de vista aqui é que os crimes cometidos pelos EUA no mesmo período são superficialmente relembrados, pouco documentados, pouco aceitos, mal vistos como crimes de fato. Eu acredito que isso é demagogia e que a verdade tem muito a ver com como o mundo se encontra hoje. Embora forçadas, de certa maneira, pela existência da União Soviética, as ações dos EUA pelo mundo deixaram claro que eles concluíram que tinham carta branca para fazerem o que quisessem. Invasão direta a um estado soberano nunca foi o método preferido pelos americanos. Geralmente, os EUA faziam aquilo que chamavam de ‘conflito de baixa intensidade’. Conflito de baixa intensidade significa que milhares de pessoas morrem, mas mais lentamente do que se você jogasse uma bomba sobre elas. Significa que você atinge o coração do país, que você lança o vírus e espera a doença matar. Não foi você quem matou. Quando a população tiver sido subjugada – ou morta – mesma coisa – e seus próprios amigos, os militares e as grandes empresas estiverem confortavelmente com o poder, você vai para frente das câmeras e diz que a democracia prevaleceu. Este foi o denominador comum da política internacional dos EUA nestes anos aos quais me refiro. A tragédia da Nicarágua foi um caso muito significativo. Eu escolhi falar sobre isso aqui para exemplificar a visão americana sobre seu papel no mundo naquele tempo e agora. Eu participei de uma reunião na Embaixada Americana em Londres no final dos anos 80. O Congresso dos EUA estava prestes a decidir se dariam mais dinheiro para o Contras em sua campanha contra a Nicarágua. Eu era membro de uma delegação que falava em nome da Nicarágua, mas o membro mais importante desta delegação era o Padre John Metcalf. O líder da corporação americana era Raymond Seitz (o mais importante depois do embaixador, posteriormente vindo a ser o próprio Embaixador). Padre Metcalf disse: ‘Senhor, estou no comando de uma paróquia no norte da Nicarágua. A congregação construiu uma escola, um posto de saúde, um centro cultural. Nós vivíamos em paz. Alguns meses atrás um grupo dos Contra atacaram a paróquia. Destruíram tudo: a escola, o posto de saúde, o centro cultural. Estupraram as enfermeiras e as professoras, massacraram os médicos da maneira mais brutal. Eles se comportaram como selvagens. Por favor, eu exijo que o governo americano retire o apoio que dá a este grupo terrorista.’ Raymond Seitz tinha uma boa reputação como um homem racional, responsável e altamente sofisticado. Ele era bem respeitado no meio diplomático. Ele ouviu, ponderou e então falou: ‘Padre, deixe-me dizer algo. Na guerra, pessoas inocentes sempre sofrem.’ Houve um silêncio constrangedor. Nós olhamos para ele. Ele não hesitou. Realmente, gente inocente sempre sofre. Finalmente, alguém falou: ‘Mas nesse caso, “pessoas inocentes” foram vítimas de uma atrocidade horrível subsidiada pelo seu governo, entre tantos. Se o Congresso der aos Contras mais dinheiro, outras atrocidades deste tipo ocorrerão. Não é? Seu governo não é, conseqüentemente, culpado por apoiar assassinatos e a destruição de pessoas em um estado soberano?’ Seitz estava impassível. ‘eu não concordo que os fatos apresentados comprovem sua teoria.’, ele disse. Quando nós deixávamos a Embaixada, um ajudante americano me disse que gostava das minhas peças. Eu nem respondi. Devo lembrá-los de que quando o então presidente Reagan disse ‘Contras são o equivalente moral de nossos Padres.’ os EUA apoiaram a brutal ditadura Somoza na Nicarágua por mais de 40 anos. Os nicaragüenses, liderados pelos Sandinistas, derrotaram este regime em 1979, uma incansável revolução popular. Os Sandinistas não eram perfeitos. Eles eram arrogantes e sua filosofia política continha vários elementos contraditórios. Mas eram inteligentes, racionais e civilizados. Eles decidiram estabelecer uma sociedade estável, decente e pluralista. A pena de morte foi abolida. Centenas de milhares de camponeses que perderam tudo foram trazidas de volta à vida. Mais de 100.000 famílias ganharam propriedade de terras. Duas mil escolas foram construídas. Uma enorme campanha diminuiu o analfabetismo do país a menos de 14%. Havia escola e serviço de saúde gratuitos. O índice de mortalidade infantil caiu a 1/3. A Pólio foi erradicada. Os EUA denunciaram essas conquistas como subversão Marxista/Leninista. Na visão do governo americano, havia um perigo se formando. Se a Nicarágua estava estabelecendo normas básicas de justiça econômica e social, se estavam melhorando o padrão de saúde e educação e atingindo uma unidade social e auto-estima, os países vizinhos poderiam se questionar e fazer o mesmo. Havia, é claro, naquela época uma violenta resistência ao status quo em El Salvador. Eu falei anteriormente sobre uma ‘vasta variedade de mentiras’ que nos cerca. Presidente Reagan normalmente descrevia a Nicarágua como um ‘calabouço totalitário’. Isso foi tipo pela mídia, e certamente pelo governo Britânico, como um comentário justo e exato. Mas não havia de fato nenhum registro de morte em massa durante o governo Sandinista. Não havia registro de torturas. Não havia nenhum registro de brutalidade cometida por militares. Nenhum padre jamais foi assassinado na Nicarágua. Havia de fato três padres no governo. O totalitarismo estava de fato bem próximo, em El Salvador e na Guatemala. Os EUA haviam derrocado o governo democraticamente eleito na Guatemala em 1954 e estima-se que mais de 200.000 pessoas tenham sido vítimas de sucessivas ditaduras militares. Seis dos mais destacados Jesuítas foram assassinados na Universidade da América Central em San Salvador em 1989 por um batalhão do regimento Alcatl treinado em Geórgia, EUA. O Arcebispo Romero, um bravo homem, foi morto enquanto celebrava a missa. Estima-se que 75.000 pessoas morreram. Por que foram mortos? Porque acreditavam que uma vida melhor era possível e que deviam lutar por isso. E acreditar nisso, imediatamente os colocou na categoria de comunistas. Eles morreram porque ousaram questionar o status quo, o imutável quadro de pobreza, doenças, degradação e opressão, que eram sua única herança. Os EUA finalmente derrotaram o governo Sandinista. Custou alguns anos e uma considerável resistência, mas uma inexorável perseguição econômica e 30.000 mortos finalmente acabaram com o espírito dos nicaragüenses. Eles estavam exaustos e miseráveis novamente. Os cassinos voltaram ao país. Saúde e educação gratuitas acabaram. Grandes negócios voltaram furiosamente. A ‘Democracia’ prevaleceu. Mas esta ‘política’ não estava restrita à América Central. Ela estava sendo levada a todo mundo. Não tinha fim. E está como se nunca tivesse existido. Os EUA apoiaram e, em muitos casos, produziram cada ditadura militar de direita no mundo após a II Guerra. Falo da Indonésia, Grécia, Uruguai, Brasil, Paraguai, Haiti, Peru, Filipinas, Guatemala, El Salvador e, é claro, Chile. O horror que os EUA impuseram no Chile em 1973 nunca poderá ser esquecido e nunca poderá ser perdoado. Centenas de milhares de mortes ocorreram nestes países. Elas ocorreram? E foram elas todas atribuídas à política internacional americana? A resposta é sim, elas ocorreram e foram atribuídas à política internacional americana. Mas você jamais saberia disso. Isso nunca ocorreu. Nada nunca ocorreu. Mesmo enquanto isso ocorria, não estava ocorrendo. Não importava. Não havia interesse nisso. Os crimes dos EUA eram sistemáticos, constantes, viciosos, sem remorso, mas muito poucas pessoas realmente falavam sobre eles. Você tinha que atribuir isso à América. Houve um exercício de manipulação de poder no mundo todo, enquanto mascarava-se como uma força do bem universal. Era um brilhante, até gracioso, altamente bem-sucedido ato de hipnose. Estou dizendo que os EUA, sem dúvida alguma, são os melhores atores. Brutais, indiferentes, desdenhosos e rigorosos, pode ser, mas também muito espertos. Usaram-se do amor próprio. Isso vence. Ouça todos os presidentes americanos dizendo na televisão as palavras povo americano, como na frase ‘Eu digo para o povo americano que é tempo de rezar e de defender os direitos do povo americano e eu peço ao povo americano que confie em seu presidente nas ações que ele está prestes a executar em nome do povo americano.’ Isso é um estratagema cintilante. A linguagem é de fato usada para distrair as atenções. As palavras ‘povo americano’ produzem uma grande tranqüilidade. Você nem precisa pensar. Apenas deite numa almofada. A almofada pode estar sufocando sua inteligência e sua capacidade crítica, mas é muito confortável. Isso não se aplica, é claro, às 40 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza e aos 2 milhões de homens e mulheres encarcerados nas prisões ao longo do território americano. Os EUA não se incomodam com conflitos de baixa intensidade. Não vêem razão em ser reticente ou mesmo tortuoso. Os EUA colocam as cartas na mesa, sem medo ou favoritismo. Eles simplesmente não dão a mínima para a ONU, leis internacionais ou críticas, que eles consideram como impotentes e irrelevantes. Eles têm a patética Inglaterra sempre dizendo “amém” pra tudo que eles fazem. O que aconteceu com nosso senso moral? Alguma vez tivemos algum? O que significam estas palavras? Elas têm a ver com um termo raramente empregado atualmente – consciência? Consciência não só de nossos atos, mas da responsabilidade dividida nos atos dos outros? Tudo isso morreu? Olhem a Baía de Guantánamo. Centenas de pessoas foram presas sem acusação, por mais de 3 anos, sem representação legal ou direito a processo, tecnicamente presas para sempre. Esta estrutura totalmente ilegal se mantém desprezando a Convenção de Genebra. Isso não só é tolerado como fortemente aceito pela chamada ‘comunidade internacional’. Estes crimes horrendos são cometidos por um país que se diz ‘o líder do mundo livre’. Nós pensamos nos habitantes da Baía de Guantánamo? O quê a mídia diz sobre eles? Eles aparecem vez em quando – uma pequena matéria na página seis. Eles foram enviados a uma terra-de-ninguém da qual jamais irão retornar. Atualmente, muitos estão em greve de fome, sendo alimentados à força, incluindo os residentes Britânicos. Nada de gentilezas nesses procedimentos de alimentação forçada. Nenhum sedativo ou anestésico. Somente um tubo no seu nariz e outro na garganta. Você vomita sangue. Isto é tortura. O que a Inglaterra diz sobre isso? Nada. O que o Primeiro-Ministro inglês disse sobre isso? Nada. Por quê? Porque os EUA disseram: ‘criticar nossa conduta na Baía de Guantánamo constitui um ato nada amigável. Você está ou conosco ou contra nós.’ Então, Blair calou-se.
A invasão do Iraque foi um ato de banditismo, um ato de terrorismo descarado, demonstrando absoluto desdém pelo conceito de Lei Internacional. A invasão foi uma ação militar arbitrária inspirada numa série de mentiras sobre mentiras e uma imperdoável manipulação da mídia e do público; um ato intentado a consolidar o controle militar e econômico dos EUA no Oriente Médio mascarando – como último recurso (todas as outras justificativas haviam falhado para justificá-los) – como libertação. Um formidável testemunho da força militar responsável pela morte e mutilação de milhares e milhares de pessoas inocentes. Nos falaram em tortura, bombas de destruição em massa, escassez de urânio, inúmeros assassinatos aleatórios, miséria, degradação e morte dos Iraquianos e disseram que estavam ‘levando liberdade e democracia ao Oriente Médio’. Quantas pessoas você deve matar para ser qualificado como um assassino ou um criminoso de guerra? Umas cem mil? Acho que isso é mais do que o necessário. Isso é motivo para que o Bush e o Blair sejam julgados pela Corte de Crimes Internacionais. Mas Bush foi esperto. Ele não aprovou a criação da Corte de Crimes Internacionais. Portanto, se qualquer soldado americano ou, por qualquer motivo, um político for submetido a um julgamento, Bush advertiu que mandará os fuzileiros navais. Mas Tony Blair aprovou a Corte e está, portanto, disponível a ser julgado. Podemos até dar o endereço da Corte. A morte, nesse contexto, é irrelevante. Tanto Bush quanto Blair deixaram este assunto para depois. Pelo menos 100.000 iraquianos foram mortos por bombas e mísseis americanos antes da resistência iraquiana começar. Essas pessoas e seu assassinato não existiram. Elas são fantasmas. Suas mortes nem foram registradas. ‘Nós não contamos corpos’, disse o general americano Tommy Franks. No início da invasão, foi publicada uma foto na primeira página dos jornais britânicos em que Tony Blair beijava um menino iraquiano. ‘Uma criança agradecida’, dizia a legenda. Alguns dias depois, havia uma reportagem e uma fotografia, nas páginas internas, de um outro garotinho, com 4 anos, sem braços. Sua família havia sido morta por um míssil. Ele era o único sobrevivente. ‘Quando terei meus braços de volta?’, ele perguntava. A história foi esquecida. Bem, Blair não estava segurando este menino no colo, ou nenhuma outra criança mutilada, tampouco algum corpo ensangüentado. Sangue é sujo. Ele suja sua camisa e gravata quando você está fazendo um discurso sincero na televisão. Os 2.000 americanos mortos são uma vergonha aos EUA. Eles foram transportados às suas covas no escuro. Os funerais são escondidos, e, locais seguros. Os mutilados apodrecem em suas camas, alguns pelo resto de suas vidas. Portanto, os mortos e os mutilados apodrecem, em covas diferentes. Transcrevo uma parte do poema ‘Estou esplicando algumas coisas’, de Neruda.

E certa manhã tudo estava queimando
uma manhã as fogueiras
saltaram da terra
devorando seres humanos
e depois disso o fogo,
a pólvora depois disso,
e depois disso o sangue.
Bandidos com aviões e mouros,
bandidos com anéis nos dedos e duquesas,
bandidos com monges encapuzados abençoando feridas
vieram pelo céu para matar crianças
e o sangue das crianças corria pelas ruas
sem ruído, como sangue de crianças.
Chacais que os chacais desprezariam
pedras que o musgo seco morderia e cuspiria longe
víboras que as víboras abominariam.
Face a face com você eu vi o sangue
da Espanha subindo como maré
para afogar você em uma onda
de orgulho e facas.
Generais
traiçoeiros:
vejam minha casa morta,
olhem a Espanha morta:
de cada casa metal incandescente flui
em lugar de flores
de cada órbita ocular da Espanha
a Espanha emerge
e de cada criança morta um rifle com olhos
e de cada crime nascem balas
que um dia encontrarão
o alvo de seus corações.
E vocês perguntarão: por que a poesia dele
não fala de sonhos e folhas
e dos grandes vulcões de sua terra natal.
Venham e vejam o sangue nas ruas.
Venham e vejam
o sangue nas ruas.
Venham e vejam
o sangue nas ruas!

Deixo claro que citando o poema de Neruda não tive nenhuma intenção de comparar a Espanha Republicana ao Iraque de Saddam Hussein. Eu citei Neruda porque nunca na poesia contemporânea eu li uma descrição tão visceral do bombardeamento de civis. Eu disse anteriormente que os EUA agora são totalmente francos. Este é o problema. Sua política oficialmente declarada é definida como ‘dominação total’. Este não é um termo meu, é deles. ‘Dominação total’ significa controle da terra, mar, ar e espaço e de todas as fontes auxiliares. Os EUA agora ocupam 702 bases militares no mundo em 132 países, com a honrável exceção da Suécia, claro. Não sabemos ao certo como eles chegaram lá, mas eles estão bem. Os EUA possuem 8.000 armas nucleares ativas e operacionais. Duas mil estão engatilhadas e prontas para serem lançadas em 15 minutos a partir do comando. Os EUA estão desenvolvendo novos sistemas de força nuclear. A Inglaterra, sempre colaboradora, quer substituir seu míssil nuclear, Trident. Para quem, eu me pergunto, estão apontando? Osama Bin Laden? Você? Eu? China? Paris? Quem sabe? O que sabemos é que essa infantil insanidade – a posse e a ameaça de usar armas nucleares – é o coração da atual filosofia política Americana. Devemos nos lembrar de que os EUA estão em permanentes passos militares e não mostram interesse em relaxar isso. Muitos milhares, senão milhões, de pessoas nos EUA estão demonstrando estarem enjoadas, envergonhadas e com raiva das ações do seu governo, mas do jeito que as coisas estão, elas não têm uma força política coerente – ainda. Mas a ansiedade, incerteza e o medo que podemos ver crescentes a cada dia nos EUA não vão diminuir. Eu sei que o Presidente Bush tem muitas pessoas extremamente competentes para escrever discursos, mas eu gostaria de ser voluntário neste trabalho. Eu proponho este pequeno discurso, que ele poderia fazer na televisão para toda a nação. Eu o vejo grave, com o cabelo bem cuidado, sério, vencedor, sincero, atraente, algumas vezes se usando de um sorriso cínico, curiosamente atraente. ‘Deus é bom. Deus é grande. Deus é bom. Meu Deus é bom. O Deus do Bin Laden é mau. Ele é um Deus mau. O Deus de Saddam seria mau, se ele tivesse um. Ele era bárbaro. Nós não somos bárbaros. Nós não arrancamos as cabeças das pessoas. Nós acreditamos na liberdade. E Deus também. Eu não sou um bárbaro. Eu sou um líder eleito de uma democracia amante da liberdade. Nós somos uma sociedade de compaixão. Nós damos uma eletro-execução com compaixão e injeções letais com compaixão. Nós somos uma grande nação. Não sou ditador. Ele é. Não sou um bárbaro. Ele é. E ele é. Todos eles são. Eu tenho autoridade moral. Vê esse pulso? Ele é minha autoridade moral. E não se esqueça disso.’ A vida de um escritor é altamente vulnerável, é uma atividade quase nua. Não temos que lamentar isso. O escritor faz sua escolha e está preso a ela. Mas é verdade quando se diz que você está aberto a tudo. Você está sozinho. Você não encontra abrigo, proteção – a menos que minta – caso em que você constrói seu próprio abrigo e, pode ser debatido, vira um político. Eu me referi à morte algumas vezes esta noite. Eu agora citarei um poema meu chamado ‘Morte’.

Onde foram encontrados os corpos?
Quem encontrou os corpos?
Estavam os corpos mortos quando encontrados?
Como estavam os corpos encontrados?
De quem eram os corpos?
Quem era o pai ou filha ou irmão
Ou tio ou irmã ou mãe ou filho
Do corpo morto e abandonado?
Estava morto quando abandonado?
O corpo foi abandonado?
Por que ele foi abandonado?
O corpo estava nu ou vestido para viagem?
O que faz você dizer que o corpo morto está morto?
Você declarou morto o corpo morto?
Quão bem você conhecia o corpo?
Como você sabia que o corpo estava morto?
Você lavou o corpo?
Você fechou ambos os olhos?
Você enterrou o corpo?
Você abandonou o corpo?
Você beijou o corpo?

Quando olhamos um espelho, achamos que a imagem que aparece é perfeita. Mas mexa-se um milímetro e a imagem mudará. Estamos na verdade olhando uma gama infinita de reflexos. Mas às vezes um escritor tem que esmagar o espelho – porque é do outro lado do espelho que está a verdade nos encarando. Eu acredito que, apesar da enorme diferença que existe, cabe a nós cidadãos, com uma destemida, imutável, violenta determinação intelectual, definir a real verdade de nossas vidas e nossas sociedades. Essa é uma obrigação crucial que todos temos. Na verdade, isso é uma obrigação. Se tal determinação não for abraçada pelos nossos ideais políticos, não temos esperança de recuperar o que está quase perdida por nós – a dignidade humana.“





Tradução: Gisele Ren