Tuesday, March 07, 2006

Outra dele!

Mais uma do Fabrício Carpinejar...
Sublime este texto...


NA HORA DE DIZER A VERDADE


A verdade engasga, sempre engasga, principalmente com os bem-intencionados.

Já passei por vários constrangimentos em que fui perguntado e era simples declarar a verdade, simples como alcançar o sal, o azeite e o vinagre, mas tomei o caminho difícil da mentira. Tinha a verdade na ponta da língua, latejando, batendo na porta, gritando, duas palavras se abraçando e estaria solta, e recuei.

Pavor de ser cobrado, pavor de não ser compreendido, pavor de ser questionado, pavor de frustrar, pavor de machucar e de ser machucado. Pavores infantis se reúnem na boca para bloqueá-la.

Tudo estaria resolvido com "eu errei, desculpa". Ou "sinto muito, tentarei ser mais atento". Um depoimento singelo e ridículo inibiria o sofrimento. Mas o orgulho não deixa, não permite desistências e arrependimentos.

A verdade não decola e inventa-se uma história inacreditável, para pôr em seu lugar. Fala-se qualquer coisa, a justificar o impossível. Expressões saem rudes, martelando o prego em todas as direções, pouco se importando com a idoneidade das paredes. O rubor da face não esconde a vergonha. Azia da covardia: engole-se o cuspe de volta.

Complica-se o que seria fácil. A intenção era contar... Só que uma pergunta de supetão, um comentário malicioso, as mãos tensas do interlocutor, e nos defendemos, fingindo desconhecimento do assunto. Mudam-se os planos e não se avisa o inconsciente.

Outras mentiras virão a partir da primeira mentira. Uma pior do que a outra exigindo novas mentiras. A farsa tende a se agravar, abrindo mais brechas e pontos fracos e inverossímeis para ser desmascarada.

Não se cochila com a culpa, experimenta-se uma falta de vontade. O comportamento expansivo transforma-se em fobia. Evita-se de falar com a pessoa que a verdade estaria sendo destinada. Muda-se de rua e de agenda para não encontrá-la. Um pânico é urdido em segredo e unicamente se trabalha para ele. Projetam-se cenas imaginárias para desabafar e se libertar do erro. A vida se torna um filme de cenas cortadas e censuradas.

A verdade envergonha. Disposto a expor que não ama mais sua mulher, no instante da revelação, ela se antecipa e confessa que nunca esteve tão feliz. É evidente que fechará a garganta com cimento e deixará a hera crescer à vontade. Ou quando está preste a deslindar seu amor e ela comenta que está interessado pelo seu melhor amigo. Vontade de cortar o beiço e vender a granel.

A verdade humilha. Para fugir dela, jura-se pelos amigos, familiares, por Deus e por tantos santos para convencer da mentira. É uma persuasão sem caráter, desesperada. Não haveria problema de jurar por si, porém não é suficiente. Mente-se pelo bairro inteiro para escapar da responsabilidade. Aquela declaração sincera que não aconteceu se converte em um seqüestro. Além da ausência de franqueza, será preciso explicar o fato de botar tanta gente jurada em risco.

A verdade intimida no emprego, nas relações amorosas, na amizade. Se o chefe pergunta se realizou uma tarefa, diz que sim, mesmo não tendo feito e passará a maior parte das horas apagando as pistas de sua ineficiência. Se a namorada pergunta sobre uma atração, alega que não existe, é loucura dela, e deixa para um dia contar.

Esse dia não chegará. Adiada a verdade num momento é quase impossível reeditá-la. Fica mais nervoso e trepidante voltar atrás. Como explicar que se é honesto agora se não foi antes?

A honestidade não nasce duas vezes.

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